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Bolsonaristas criam listas para intimidar “petralhas e comunistas”

Vendinhas de bairro, cabeleireiras, jornalistas, tatuadores e um prostíbulo, basta não ser rico. Apesar da omissão das autoridades, vítimas vão à Justiça

Um dos episódios mais hediondos da política brasileira desde a redemocratização está em curso no interior do Brasil, onde grupos bolsonaristas criam e distribuem listas com os nomes de profissionais e de estabelecimentos comerciais “acusados” de serem dirigidos por petistas ou simpatizantes de partidos de esquerda. Os “petralhas e comunistas” sofrem ameaças veladas ou abertas desde a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas. Ainda que os alvos sejam locais, a velocidade e o padrão de disseminação sugere uma ação orquestrada nas redes. Este tipo de jogo difamatório e intimidador pode e deve ser retaliado com ações judiciais, mas não é o que ocorre até agora na imensa maioria dos casos, seja por temor, constrangimento ou sentimento de impotência das vítimas – e por conivência ou inação das autoridades. Se há quem relativize a gravidade dos episódios registrados em pelo menos 20 cidades, basta pesquisar na internet o que foi o macarthismo, prática política americana dos anos 1950 que consistia em acusar sem provas alguém de subversão ou de traição, apenas pelas convicções políticas dos citados, que perdiam empregos e eram prejudicados em todas as esferas da vida social. Muitos foram para a prisão. Até Charles Chaplin foi atacado. Quer ir mais fundo? Descubra o significado do termo russo do século XIX pogrom.

O que se perpetra às escondidas em municípios de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande Sul, São Paulo e Minas Gerais é um ensaio de autoritarismo anônimo e covarde. Ainda que circulassem desde o início de outubro, só depois que a tentativa de contestação do resultado das urnas e o bloqueio das rodovias como forma de pressionar os militares para um golpe deu em nada, o neomacarthismo minion colocou as garras de fora para valer – mas só contra os pequenos.

Gente de bem

Em Encantado, cidade gaúcha que ergueu um Cristo maior que o Redentor do Rio para celebrar a fé e a caridade, uma lista apontou o dedo para donos de mercadinhos de bairro, uma dermatologista, uma padaria com 50 anos de funcionamento, um dentista, um sushi bar, uma banca de açaí, o posto de gasolina que reúne torcedores gremistas e uma pequena clínica de estética. A lista dos lugares a serem evitados pela dita “gente de bem” surgiu nas redes informais de praticantes de beach tennis do Comercial, o maior clube da cidade. A diretoria repudiou, mas nada andou. Nenhum industrial, dono de dinheiro antigo ou quem tenha ligações políticas familiares sólidas foi molestado. O caso gerou uma queixa na delegacia local (anexo). Empresas e profissionais das cidades vizinhas de Roca Sales e Muçum também foram citados.

Na mineira Guaxupé, a democrática e de duvidosa reputação Boate Cabaré foi incluída no índex. Não se sabe se foi por moralismo ou pela iluminação vermelha do salão e dos quartos onde senhores e moços vão exercer, mediante paga, as facetas mais salientes de suas virilidades. Mesmo assim, a Cabaré se mantém firme com seu público fiel e apolítico. A mesma listinha negra circulou na catarinense Chapecó, que ganhou a solidariedade nacional pelo trágico acidente aéreo com o time local, a Chapecoense, em 2016. As vítimas incluem uma vidraçaria, dois estúdios de tatuagem, um de micropigmentação, um petshop e duas clínicas veterinárias.

Até uma Apae

Na gaúcha Ijuí, terra do capitão do tetra Dunga e da subcelebridade Andressa Urach, o absurdo ganhou impulso com a inclusão da unidade local da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), entidade assistencial de escala nacional que recebe doações públicas e privadas para oferecer educação especial e tratamento para portadores de limitações físicas e intelectuais. Em São José do Rio Preto (SP), a associação comercial e a regional da Associação Paulista de Medicina repudiaram a lista de WhatsApp e Telegram que apareceu na cidade que abriga um campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Um escritório de advogados foi contratado pelas 26 vítimas iniciais em busca de reparação e punição.

O primeiro caso dessa série foi noticiado no site da revista Piauí, em 27 de outubro (A lista da intolerância). A maldade começou interestadual, atingindo gente das vizinhas Mafra (SC) e Rio Negro (PR), separadas pela divisa e pelo curso d’água homônimo. De acordo com a reportagem, uma das vítimas foi a psicóloga Vitória Maria Frighetto Hirt, que em 19 de outubro recebeu de um amigo um print de tela captado no Facebook com 27 nomes de pessoas e pequenas empresas. A orientação anônima era boicotar os “petralhas”, “esquerdistas” e “comunistas” como ela. O professor de literatura Luiz Carlos Felipe, de Mafra, foi alvo de comentário irônicos de alunos nos corredores do colégio onde leciona. Dos citados, 13 devem entrar com ações junto aos ministérios públicos estaduais dos dois estados.

Perseguição na universidade

No Amapá, antes que surgisse uma lista, a professora da universidade federal (Unifap) Sheylla Susan de Almeida enviou uma mensagem por WhatsApp se recusando a orientar dois doutorandos de Farmácia declaradamente petistas [anexo]. Eles a denunciaram à reitoria. A resposta foi um pedido de desculpas não muito diferente de um adolescente pego em flagrante. “Sou ser humano”, disse, desconsiderando a perversidade cometida. Uma das alunas dispensadas é colega de profissão, a professora Débora Arraes (35), da Universidade do Estado do Amapá (UEAP). “Fui informada de que eu estava sendo desligada pelo fato de eu ter votado no Lula. Ela nunca havia demonstrado posicionamento semelhante por questões políticas. Nas redes sociais, ela é declaradamente negacionista, mas eu, como aluna e também professora, entendo que são posições que não deveriam ser consideradas numa relação entre orientador e orientando”, afirmou Arraes ao UOL.

Um dos denunciantes do esquema da Vaza-Jato, em 2019, que culminou na anulação do julgamento de Lula na Lava-Jato, o jornalista Leandro Demori, ex-The Intercept Brasil, saiu do país temeroso pela integridade de sua família. Desde 2021 ele sofre intimidações cotidianas, mas o clima piorou depois que o ex-presidente petista ganhou o direito de ser candidato. Após a vitória, ele só pensa em voltar depois que os responsáveis pelos ataques forem identificados e devidamente punidos. Sua mãe está em pânico, mas em segurança e distante dos arruaceiros virtuais.

Se tratam de crimes seriados que podem ser punidos mesmo se desconsiderados o aspecto político depois que a perseguição (stalking) foi tipificada no Código Penal. De acordo com Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, os agressores podem também ser processados por discriminação e incitação se estimularem além do boicote, alguma violência ou ofensa contra quem apenas votou em outro candidato.

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