O dicionário Aurélio define a palavra “mandato” de quatro formas. Uma delas é a seguinte: “Poder político outorgado pelo povo a um cidadão, por meio de voto, para que governe a nação”. E o que seria uma nação? O mesmo Aurélio nos oferece alguns significados. Vamos a um deles: “O povo de um território organizado politicamente sob um único governo”. Portanto, ao lermos essas duas definições, chegamos à conclusão de que, ao receber um mandato presidencial, o eleito deve governar para todos – e não apenas para quem o elegeu.
Não se pode acusar Jair Bolsonaro de governar apenas para seu grupo de apoiadores. Mas, sem dúvida, ele se comunica somente com seus seguidores. O discurso do presidente reflete completamente o que se passa na cabeça de seu eleitorado raiz. Este comportamento sempre esteve presente desde o início de seu governo. Mas, conforme vamos nos aproximando das eleições de 2022, cada vez mais parece que ele está falando apenas com seus seguidores fiéis.
Ontem, tivemos mais duas manifestações presidenciais feitas sob medida para os bolsonaristas mais inflamados. A primeira foi ao dizer que iria redigir um decreto proibindo as medidas de lockdown tomadas por governadores e prefeitos, baseado no direito que os cidadãos brasileiros têm de ir e vir. O alvo dessa estocada é o governador de São Paulo, João Doria, que decretou recentemente medidas de quarentena e é frequentemente criticado pelo presidente.
O problema é que entre os representantes dos poderes estaduais e municipais que fecharam as atividades comerciais locais há também apoiadores de Bolsonaro. Ou seja, para atacar um desafeto em especial, Bolsonaro acabou cutucando alguns aliados.
A política é a arte da negociação. Mas, neste momento, o presidente – pelo menos em suas palavras – prefere impor seu ponto de vista. Sobre o tal decreto, ele avisou: “Não ousem contestar”. Agora, temos que esperar para ver se essa decisão será mesmo publicada no Diário Oficial ou se estamos diante de mais uma bravata.
Aqueles que conseguem enxergar uma estratégia política por trás dos gestos aparentemente impulsivos do presidente acreditam que esse desabafo tem um objetivo oculto: sensibilizar os empresários do comércio de rua e donos de restaurantes, que reclamaram insistentemente contra as medidas que fecharam as portas de seus estabelecimentos. Ao bradar contra esses atos de governadores e prefeitos, o presidente se mostraria ao lado de quem está insatisfeito e apto a angariar esses votos no ano que vem.
Ocorre que o presidente também tem enfrentado altos índices de rejeição durante a pandemia. Muitos analistas acreditam que esse descontentamento tenha origem na situação econômica, agravada pelo redução no valor dos auxílios emergenciais, e no discurso negacionista. Ao insistir em agradar a sua base, porém, Bolsonaro pode decepcionar aqueles eleitores de 2018 que se encontram insatisfeitos com os rumos do governo.
De qualquer modo, os bolsonaristas de primeira hora estão se deleitando com as declarações do presidente, que ontem também teceu algumas insinuações em direção à China. “É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês”, afirmou.
Mais uma vez, o presidente disse aos seus seguidores o que eles querem ouvir – basicamente que os comunistas chineses produziram o vírus, o espalharam por aí e se deram bem economicamente com uma pandemia causada por eles. Imaginemos que essa teoria da Conspiração seja verdadeira. Como é que os cientistas americanos, com uma tecnologia biológica de ponta, não conseguiram encontrar provas de que o coronavírus foi criado artificialmente?
Lembremos que, durante o primeiro ano de pandemia, os Estados Unidos eram liderados por Donald Trump, cuja plataforma eleitoral sempre foi crítica contra a China. Se a tese de que a Covid-19 faz parte de uma guerra química pode ser provada, por que o ex-presidente não a divulgou?
A resposta é simples: porque se trata de uma teoria da conspiração. Nada mais que isso.
Bolsonaro está trilhando o mesmo caminho escolhido por Trump no ano passado: não acreditar nas pesquisas e radicalizar o discurso, agradando os apoiadores mais fiéis. Terá a mesma sorte que o amigo americano? Ainda é cedo para arriscar um palpite, até porque o tão esperado candidato da terceira via está demorando para surgir.
O presidente parece ter escolhido um roteiro a ser seguido daqui em diante: ser o Bolsonaro velho de guerra, aquele político que esbraveja, briga e pressiona, receptivo a qualquer tipo de conspiracionismo que mostre os comunistas como o centro dos problemas enfrentados pela humanidade.
Ocorre que, tanto na política como na guerra, é preciso ter a capacidade de se adaptar às novas circunstâncias, como nos ensina um dos maiores estrategistas militares da história. “A grande arte é mudar durante a batalha. Ai do general que vai para o combate com um esquema”, dizia Napoleão, cuja morte, ontem, completou 200 anos. Se essas palavras, ditas há mais de dois séculos, continuam vivas, é sinal de que a sabedoria nelas incrustada deve ser levada em conta. Mesmo por políticos que se deixam dominar pela teimosia.