Se deixar guiar por afinidades no terreno diplomático pode custar para um país. Confira tropeços e acertos de Bolsonaro, Lula, Geisel, Jânio e Vargas

Líderes não fazem amigos, apenas aliados. É uma condição necessária à vida política, ainda mais em altos postos. Os interesses estão acima de tudo e nada há de errado nisso, mesmo que a moral e as simpatias sejam atropeladas com frequência. Já quando inexiste ganho político ou econômico, o que sobra são apenas desgaste, gafe e regozijo dos críticos. E não faltam exemplos. O mais clássico na política brasileira é o ex-presidente Jânio Quadros homenageando o revolucionário argentino Che Guevara, que em 19 de agosto de 1961 recebeu a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Che era o ministro da Economia de Cuba e estava a caminho de uma conferência no Uruguai. Populista de direita, Jânio não poderia hostilizar um representante de governo estrangeiro, claro, mas lhe conceder honrarias foi uma barbeiragem. Os cubanos ficaram surpresos e, em um mundo dividido pela Guerra Fria, aquilo soou como uma desnecessária provocação. Quatro meses antes os Estados Unidos haviam patrocinado a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos para derrubar o regime de Fidel. Já desgastado, uma semana depois Jânio renunciaria, abrindo o caminho para o ciclo de instabilidade que levaria ao Golpe de 1964 e uma ditadura militar de 21 anos.

Industrialização
No ângulo reverso, o Brasil já conseguiu se sair bem várias vezes. Ao mudar de rumo, o ditador Getúlio Vargas acabou do lado dos vencedores. No caminho, obteve acordos comerciais vantajosos e recursos para a construção da CSN, em Volta Redonda (RJ), dando início à indústria pesada brasileira. A aproximação com as democracias liberais jogou água nas relações com a Alemanha nazista. Com isso, o jovem militar Ernesto Geisel viu acabar a oportunidade de conhecer o Terceiro Reich, onde assistiria manobras como parte de um acordo militar que nunca ocorreu.
Décadas depois, o mesmo Geisel em versão ditatorial fecharia um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental – a democrática -, contrariando o aliado preferencial Estados Unidos. Em nome da diplomacia e das relações comerciais, o “pragmatismo responsável” do general presidente estabeleceu relações com a China comunista, hoje nosso principal parceiro comercial, e reconheceu a independência de Angola, onde a Petrobras ajuda a explorar petróleo. Com esse posicionamento amistoso, o Brasil até hoje vende frango, aviões, milho, lingerie e alguns veículos para países africanos, assim como se tornou parceiro mais ativo dos vizinhos sul-americanos. Não é muito, mas é bem melhor que o nada do isolamento. Seu sucessor fardado, João Figueiredo, melhorou as relações comerciais com a Polônia do Pacto de Varsóvia, concedendo empréstimos ao país que reprimia os sindicalista reformistas do Solidariedade. Figueredo e Sarney também abrigaram no Brasil parte da família do dissidente angolano Jonas Savimbi, que pretendia derrubar o regime comunista em seu país. Nesses governos começaram a ampliação das vendas de carne à Arábia Saudita, uma teocracia monárquica, e ao Irã dos aiátolas. Empreiteiras fecharam grandes contratos com o Iraque de Saddam Husseim. Com FHC, Lula e Dilma, as relações com a Venezuela e Cuba se estreitaram. O mesmo ocorreu com Indonésia, África do Sul, Rússia e Índia – em diferentes níveis. A intenção era diversificar os clientes, mesmo nem todos estando no padrão democrático brasileiro. Negócios são negócios.
Déspotas camaradas

Nem por isso os governos Lula/Dilma precisariam tecer elogios à Fidel, Chávez, Ahmadinejad e Gaddafi. São coisas diferentes. Do mesmo modo, Bolsonaro não deveria ter ido ao encontro de Vladimir Putin, na Rússia, e de Viktor Orbán, na Hungria, na semana passada. O Brasil saiu da viagem mais isolado e diminuído. Felizmente nem sempre sai tudo errado. Passou quase desapercebido, mas em 3 de fevereiro Bolsonaro teve um rápido encontro com o presidente peruano Pedro Castillo, em Rondônia. Crítico à imprensa e com pendores algo autoritários, fora isso Castillo reúne quase tudo que Bolsonaro detesta. É de esquerda, tem sangue indígena, foi professor e liderou uma grande greve que o projetou na política. O brasileiro preferiu colocar as diferenças de lado em nome dos interesses comerciais e diplomáticos. Assim como Jânio, não há lógica e previsibilidade nas ações do atual presidente. Antes, Bolsonaro criticou o resultado das eleições no vizinho, assim como também fez tudo errado quanto aos resultados das urnas no Chile, Argentina e Estados Unidos. Sem contar as críticas à China.

Voltando ao encontro entre Jânio e Che, anos depois o jornal satírico O Pasquim produziu uma de suas capas mais icônicas. Guardadas as proporções históricas, as equiparações são cabíveis. E também se encaixam ao novo convidado presidencial, o príncipe Mohammed bin Salman (imagem), suspeito de ordenar o assassinato e esquartejamento do jornalista exilado Jamal Khashoggi, em 2018, dentro do consulado saudita em Istambul, na Turquia. O local estava grampeado pela espionagem turca. Bolsonaro disse ter afinidades com o príncipe – e com Putin e Órban. Nessas horas, vale lembrar do máxima do humorista, escritor e político Aparício Torelly, o Barão de Itararé: “Dize-me com que andas e eu te direi se vou contigo”. O aforismo de gozação cai bem para a diplomacia brasileira, que caminha para o isolamento.