Com pesquisa de ponta, o cereal de clima temperado é adaptado aos trópicos. A autossuficiência abriria caminho para o Brasil se tornar um exportador de peso, como EUA, Argentina, Canadá, Ucrânia e Rússia
Dependente crônico da importação de trigo para atender a demanda interna, o Brasil vive no Cerrado uma transformação silenciosa e estratégica. O responsável por essa mudança que aos poucos chega às mesas e prateleiras brasileiras é o trigo tropical, uma série de 33 variedades disponíveis e adaptadas às condições do bioma central do país com potencial para transformar um importador crônico em um novo protagonista no mercado global desse grão. Não seria uma novidade. A partir da década de 1970, um trabalho científico intenso de adaptação permitiu o mesmo com a soja. A autossuficiência seguida de exportações deixariam a balança comercial mais azulada.
O consumo nacional é de 13 milhões de toneladas. Em 2024, o Brasil importou 6,65 milhões de toneladas de trigo, um aumento de 59% em relação a 2023. O valor desembolsado com essas compras foi de US$ 1,64 bilhão, aponta a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), a maior parte vinda da Argentina, dona de 63% das importações em 2024. De acordo com Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), 55% da farinha de trigo é utilizada na indústria de panificação, 17% vai para o consumo doméstico, 15% na produção de massas, 11% em biscoitos e 2% em outras aplicações.

Avanço e potencial
A produção nacional de trigo cresce ano após ano. Para a safra 2024/25, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estima uma colheita de 8,47 milhões de toneladas, um aumento de 7,4% em relação ao ciclo anterior. Embora a região Sul ainda seja a principal produtora, o Cerrado se destaca como nova fronteira agrícola, alavancado pelas cultivares desenvolvidas para suportar os trópicos.
“Evoluímos de 5 mil hectares nos anos 70 para mais de 400 mil hectares no Cerrado do Brasil Central”, afirma Julio Albrecht, pesquisador da Embrapa Cerrados. A área com aptidão para o cultivo de trigo tropical chega a 4 milhões de hectares, sendo 1,5 milhão irrigáveis e 2,5 milhões para cultivo de sequeiro. No período de 2018 a 2023, a área cultivada no Brasil Central cresceu 110,7%, enquanto a produção aumentou em 131,5%, mostrando o dinamismo da cultura na região, que inclui Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, São Paulo e Distrito Federal.
Os sistemas de produção se dividem entre sequeiro, que representa 80% da área plantada e tem produtividade média entre 2 e 3 toneladas por hectare (uma área de 100 metros de comprimento por 100 de largura), e o irrigado, que responde pelos 20% restantes, mas pode alcançar mais de 7 toneladas por hectare, com recorde mundial registrado em 2021 de 9,63 toneladas por hectare.
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Resistente à estiagem
Um dos trunfos do trigo tropical seria sua qualidade industrial. “Hoje produzimos no Cerrado um dos melhores trigos para panificação do mundo, em função do clima e das variedades desenvolvidas”, destaca Albrecht. Isso garante aos produtores uma posição privilegiada no mercado nacional, já que o trigo do Cerrado é o primeiro a ser colhido no Brasil, atendendo a um mercado ávido e com prêmios de preço superiores aos pagos nas regiões sulistas.
Esse nível de qualidade posiciona o Brasil como um potencial fornecedor de trigo premium para mercados exigentes, como o europeu e o asiático, abrindo uma nova frente de exportações para o agronegócio.
Apesar dos avanços, o trigo tropical ainda enfrenta desafios. A brusone — doença fúngica comum onde há alta umidade e temperatura — é o principal obstáculo ao sequeiro. Albrecht ressalta: “Estamos desenvolvendo novas cultivares mais resistentes à seca e à brusone. Em breve, lançaremos materiais com maior estabilidade produtiva tanto para o sistema irrigado quanto para o sequeiro.”
A pesquisa tem sido fundamental para superar esses desafios. Um estudo da Embrapa Trigo revelou que a cultivar BRS 404, variedade que suporta melhor o déficit hídrico, um fator limitante nas últimas safras. Em média, os rendimentos da BRS 404 foram 12,4% superiores em anos de pouca chuva no Brasil Central quando comparados às demais cultivares em uso na região, o que pode representar até sete sacos a mais por hectare. Esse desempenho superior se deve ao seu potencial de enchimento de grãos mesmo em condições adversas, como seca e temperaturas mais elevadas. Em 2023, considerado um dos melhores anos para o trigo tropical de sequeiro, os rendimentos da BRS 404 atingiram 71,9 sacos por hectare.
Segundo o pesquisador Vanoli Fronza, da Embrapa, para explorar melhor os benefícios da BRS 404, a variedade deve ser semeada no fechamento do plantio, reduzindo os riscos com brusone e destacando-se em caso de limitação hídrica. A atuação da Embrapa, ao lado de outras instituições de pesquisa e empresas privadas, tem sido decisiva para o avanço contínuo da produtividade e da resiliência das lavouras de trigo tropical, criando um ambiente propício para sua expansão sustentável e para responder às mudanças climáticas, que agravam a irregularidade das chuvas e o estresse hídrico.
Impacto comercial
Diante da crescente produtividade e qualidade, Albrecht acredita que o Brasil pode caminhar para a autossuficiência nos próximos anos. “Com certeza, a produção de trigo tropical vai contribuir para o Brasil depender cada vez menos da importação de trigo, que consome muitas divisas. O aumento de área plantada e produtividade são os dois caminhos para isso”, aponta.
“Já exportamos trigo para alguns países. Depois da autossuficiência, poderemos exportar um trigo de excelente qualidade. Cada 100 mil hectares a mais no Cerrado significam 300 mil toneladas de trigo e um impacto de cerca de R$ 450 milhões na balança comercial brasileira.”, finaliza.

Amigo da soja
Outra novidade e que não haveria possibilidade de concorrência direta com a soja, cuja produção é quase 20 vezes maior, com 150 milhões de toneladas – com 90 milhões de toneladas exportadas gerando cerca de US$ 60 bilhões. Pelo contrário, o trigo ajudaria a soja, pois sua palhada melhora a estrutura do solo, melhora o controle plantas daninhas e doenças.
Esse papel ecológico transforma o trigo em uma ferramenta para manter a saúde do solo, a produtividade dos sistemas integrados e a longevidade das áreas agrícolas. Sua inserção em rotação com soja e milho contribui para práticas agrícolas mais resilientes e menos dependentes de insumos químicos.
Velhos desafios
Mas para que tudo funcione é preciso investir em infraestrutura. O principal gargalo é a escassez de moinhos na região central do país. “Precisamos aumentar o número de moinhos aqui no Cerrado. Isso vai agregar valor à produção local e estimular ainda mais o cultivo”, afirma Albrecht.
Respostas de 4
Muito boa reportagem muito completa uma informação excelente
PARABENS
Futuro promete então!
Muito boa notícia! O trigo tem tudo pra ser um novo marco no agro daqui, assim como foi com a soja
o brasil não brinca em serviço quando o assunto e agronegocio 🥳