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Anestesiados pela democracia

Ontem, vi o filme “Meu nome é Gal”, com Sophie Charlotte no papel principal. A película é uma boa reconstituição de época e Charlotte, dona de uma voz redonda e sedosa, faz um trabalho competente ao interpretar uma das maiores cantoras brasileiras, especialmente porque o prazo escolhido para falar de Gal Costa é entre a sua chegada no Rio de Janeiro, nos anos 1960, até o show Fa-Tal, realizado em 1972.

O problema de muitas cinebiografias que retratam nossos ídolos é que o personagem registrado na tela parece sempre ser um rascunho da vida real (é a impressão que se tem ao assistir o longa-metragem de Dandara Ferreira e Lô Politi). Isso, diga-se, não é culpa dos atores e atrizes que encaram o desafio de encarnar alguém idolatrado pelas massas. A limitação de tempo que o cinema impõe acaba impedindo que se explore melhor as contradições e minúcias de pessoas públicas. Além disso, alguns artistas geniais simplesmente não têm personalidades à altura de seu talento (não parece ser o caso de Gal). Lembro de um amigo jornalista que voltou decepcionadíssimo da entrevista com uma das maiores atrizes brasileiras: ele a achou, sem um personagem para chamar de seu, muito chata, previsível e pouco inteligente.

Gal Costa conseguia ir da doçura delicada (com “Baby” e “Antonico”) à rebeldia assertiva (“Divino Maravilhoso” e “Brasil”) em sua obra. E tinha uma presença no palco que hipnotizava a plateia, especialmente quando atingia notas agudas com uma limpidez cristalina.

Mas tem algo que chama a atenção neste filme: o inconformismo dos artistas (especialmente os baianos da Tropicália) em relação à falta de liberdade que o país enfrentou na época da ditadura militar. Apesar do Estado repressor, via-se na classe artística, entre os anos 1960 e 1970, uma disposição incansável para questionar o regime – muitas vezes utilizando metáforas para driblar a censura que existia naquele momento histórico.

Hoje, vivemos uma democracia. Mas convivemos com alguns sinais claros de desrespeito às liberdades individuais (nada, entretanto, que se compare aos chamados anos de chumbo). Mesmo assim, deixamos passar batido esses ataques à liberdade. É como se estivéssemos anestesiados pela democracia e, assim, não damos importância a esses eventos localizados.

Deveria ser o contrário. O preço da liberdade é a eterna vigilância. Essa frase, atribuída tanto ao ex-presidente americano Thomas Jefferson como ao político irlandês John Philpot Curran (que curiosamente foram contemporâneos), reflete o que todos nós deveríamos fazer. A cada tentativa de supressão de nossa liberdade, por menor que seja, deveríamos estrilar. E muito.

A classe artística deveria fazer parte deste processo. Ocorre que poetas e compositores se sentem muito mais motivados a falar de liberdade quando não a têm. É como colocar um cadeado na porta depois de ter sido roubado: reclamamos da falta de livre-arbítrio depois que ele foi tirado de nós.

A lógica nos diz para fazer o oposto: brigar – nos discursos e nas artes – por nossa livre expressão. Mas nem sempre a inspiração e a disposição para lutar surgem de uma ordem racional de nossas mentes.

Nessas horas, temos de tocar os corações das pessoas e lembrá-las de como é importante para uma sociedade viver sem censura. Enquanto os nossos inimigos estão sendo calados, achamos que o problema não é nosso. Não se iludam. Em algum momento, será.

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