O governo militar brasileiro, enquanto durou, viveu em vários momentos de dupla personalidade. Era uma ditadura, mas tinha Congresso, Supremo Tribunal Federal e eleições (indiretas) para os cargos executivos – com exceção, evidentemente, nos momentos em que o Parlamento foi fechado, em 1968 e 1977.
Hoje, vê-se essa crise de identidade no processo de substituição do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Todos os nomes cogitados são médicos com carreira respeitada e a maioria ligada a hospitais de renome, como Albert Einstein e Sírio-Libanês. Alguns deles: Ludhmila Hajjar, Nelson Teich, Claudio Lottenberg, Roberto Kalil e João Gabbardo (o número dois de Mandetta). Ou seja, havia um técnico no cargo e procura-se alguém com o mesmo perfil para entrar em campo.
No caso do governo militar, tínhamos os procedimentos de uma democracia, mas estávamos numa ditadura. Em relação à substituição de Mandetta: teremos um técnico em seu lugar, mas ele terá autonomia? Ou só assumirá o cargo se estiver totalmente comprometido com a agenda do presidente Jair Bolsonaro?
Antes de mais nada, Bolsonaro é o presidente e cabe a ele dar a direção de seu governo. Portanto, tem o direito de escolher quem quiser para o cargo. Mas fica aqui uma pergunta: o presidente quer esse tipo de profissional apenas para dar respaldo à execução de suas ideias? E por que exatamente escolher alguém com esse perfil? Por que não um generalista, a exemplo de Pedro Parente durante a crise do apagão?
O STF, por exemplo, já avisou que a ordem de reabrir os estabelecimentos e prédios comerciais é de governadores e prefeitos. O Ministro da Saúde, assim, terá de possuir grande traquejo político para trazer os representantes estaduais e municipais para a esfera em que estará a estratégia do governo federal. Caberá ao titular da Saúde a condução de um protocolo nacional de combate ao coronavírus, mas o Ministro não terá o poder de encerrar as quarentenas que estão em vigor nas cidades brasileiras. Será que alguém vindo das hostes médicas terá essa capacidade?
De qualquer forma, esse é um processo que não pode ser eterno. Isso é um fato. Um de seus efeitos, a preocupação com o futuro da economia, está chegando até aos defensores mais radicais do isolamento social como melhor solução no combate à pandemia. Todos sabem que esta não é uma medida duradoura e que já começa a dar sinais de desobediência. Portanto, é preciso se preparar para a segunda etapa – e essa deveria ser uma das preocupações do novo ministro.
O Day After do lockdown, diante das necessidades urgentes do dia a dia, não está na lista de prioridades do Executivo, mas deveria estar. Por isso, é de se esperar que a quarentena será afrouxada em breve. Seja pelo achatamento da curva de contágio e internações, pelo comportamento da população ou por uma convulsão social. Mas é inevitável. E o novo Ministro deve pelo menos pensar em estratégias de saída do shutdown ou de combate a um segundo surto, vindo do desrespeito às regras de isolamento social.