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No reforço com Popper, Eco e um negacionista arrependido

Dos pontos de vista social e sanitário, beleza, mas nem tudo está salvo quando manés se valem de falseamento lógico diante de familiares mortos
Um desses caras aguardando sua dose só aceitou vacina após perder parentes

Um dos sujeitos da imagem ao lado não estava vacinado até a última sexta-feira (21) e me disse ter perdido parentes e/ou pessoas próximas na pandemia, não ficou claro. Mas quem não perdeu? Tive amigos bem doentes, um ainda está de muletas, outro viu o pai morrer de repente, dois colegas de trabalho de minha esposa se foram sem que um soubesse do estado terminal do outro. Com saúde frágil, minha irmã mais velha está isolada há quase dois anos. Mas daí, à fila. O que era para ser uma situação do novo normal (esse termo já mereceria hífen) virou uma dose muar de suco de Brasil.

Entrei na UBS de Santa Cecília, uma das mais movimentadas da cidade de São Paulo. Fui instruído a ir até a escola pública ao lado, a Conselheiro Antonio Prado. Ali há mais espaço livre e, portanto, menor risco de contaminação. Sem contar que a criançada aos poucos observa os adultos tomando suas doses de reforço e vai afugentando qualquer receio. Um caso de bom uso do espaço público.

Ao chegar ao pátio, sou ultrapassado por um afobado.
– É aqui a vacina? Preciso tomar logo.
Achei estranho. Não deveria ser a vez dele, pois parecia ter quase 30 anos, mas vai que tivesse pressão alta, diabetes, alguma comorbidade.

– Você, vai tomar também? É a sua primeira?
Luzes amarelas começaram a piscar na minha cabeça. Mas como não tenho um grande senso de autopreservação, joguei uma isca:
– Vou tomar o reforço. A terceira. E você? Em que parte do planeta andava?

Em vez de ouvir alguma ladainha delirante ou ser classificado de esquerdopata, me deparo com meu primeiro negacionista com viés de arrependido. Um tipo social novo, espero. Tudo bem que a maioria dos brasileiros aceite a vacinação – eram 85% no último levantamento que lembro ter lido. Mas os outros 15% da qual o cara ali fazia parte até então compõem uma poderosa rede roteadora de vírus e desinformação. Nem vou entrar no negacionismo presidencial. A turma do contra existiria mesmo sem Bolsonaro.

Claramente incomodado por estar ali (suponho que no metrô ou no boteco, bem menos), o sujeito se explica:
– Sabe o que é, vacilei.
Não perdoei:
– Mas por quase dois anos?
Daí ele engatou:
– São coisas na minha cabeça [vozes, pensei]. Sou muito desconfiado. Esse negócio dos efeitos colaterais. Foi medo, viu.
Nessa, já estava chateado, querendo ouvir sobre DNA, nanochips injetados na corrente sanguínea, satélites chineses rastreando minha tia de 90 anos lá em Roca Sales, no interior gaúcho.

Inconformado, dou corda:
– Mas só agora que veio a ômicron? Essa pelo menos mata menos. Espero que ninguém da sua família tenha ficado doente, muito menos falecido.
A justificativa:
– Perdi gente, sim. Mas só agora. Essa [ômicron] é a pior. Essa é a que vai matar geral. Tão dizendo que tá passando, mas você vai ver só.

Assim, descobri o negacionismo reverso. Depois de 23,9 milhões de infectados, quase 1 a cada nove brasileiros, e 1 em cada 342 ter morrido (essa proporção já foi maior, 1 para cada 225), o sujeito precisou perder gente próxima para ter a cidadania de tomar a primeira agulhada. E eu, que desde 15 de março de 2020 mal saio do home office, é que vou ver? Tô vendo faz tempo. Mas o delírio não acaba. Afinal, se antes ele se esquivou da vacina, agora precisa de algo mais poderoso para aceitar que sua vidinha de cidadão de bem está em risco – ainda.

– Eu ia viajar. Tive medo de reações. Você teve reações adversas sérias? Qual você tomou? Aqui é Pfizer, né?
O entrevistador tinha virado entrevistado.
– Tive uns calafrios na primeira e só. Mais nada, nadica.
Foi quando percebi que meu negacionista era um molóide, um medroso mimizento.

Karl Popper: filósofo estabeleceu as premissas da falseabilidade e do racionalismo crítico

A indignação paranoica é alvo de observação há tempos. No ensaio Conjecturas e Refutações, lá de 1963, Karl Popper (1902-1994) inaugura a teoria social da conspiração, ainda que o termo não seja citado em suas quase 30 páginas. Pai do racionalismo crítico, argumentava que se uma hipótese (como o negacionismo vacinal) não possa ser deduzida logicamente, pode ser falseada logicamente, como estamos vendo por aí.

Umberto Eco (1932-2016) se valeu desses delírios para alimentar suas tramas cínicas, em especial em O Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault. “A psicologia da conspiração nasce do fato de que as explicações mais evidentes de muitos fatos preocupantes não são satisfatórias e muitas vezes não são aceitas justamente porque são duras de aceitar”, escreveu Eco em 2007, no pequeno artigo Conspirações e Tramas, publicado aqui na coletânea Pape Satàn Aleppe – Crônicas de uma Sociedade Líquida.

E veio a justificativa:
– Sabe o que é. Eu leio muito, por isso não entrei nessa de vacina.
Entre esmurrar o sujeito e ficar na minha, lembrei que mesmo o maior mané possui algum método. Contemporâneo pouco lembrado de Freud, Alfred Adler dizia que quando os objetivos individuais preestabelecidos não podem ser alcançados, o resultado pode ser uma “dinâmica patológica”. Então agora meu negacionista poderia sair da neurose, despertado por uma picadinha no braço? Dos pontos de vista social e sanitário, beleza, mas nem tudo estava salvo.

– Vou te contar. Fiz uma viagem de avião. Que medo daquilo cair. O negócio é cheio de baterias.
– Mas o que segura o bicho no ar são as asas e os motores.
– Mas têm baterias nas asas e nos motores. Eu trabalho com tecnologia. Sei dessas coisas [imaginei o moço numa sala suarenta desmontando celulares].
Daí cansei. Prefiro os tios esbravejantes de correntes WhatsApp. São mais divertidos. Nesse havia a tristeza da perda.

Chega a vez dele. Na saída, mais uma:
– Valeu aí, pessoal. Dependendo, nem volto para a próxima.
A seguir sou atendido e, naquele instante que dura a inoculação, a moça do postinho comenta comigo que ultimamente “esses tipos estão aparecendo aos montes, sempre falando do pai ou do tio que morreu”. Vasculho Popper e encontro uma definição elegante que meu recalcitrante jamais adotará: “Somos fiéis às nossas expectativas mesmo quando elas são inadequadas – e deveríamos reconhecer a derrota”.

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