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Meus quase bons motivos para ter armas

Nunca tive arma alguma, mas sabia atirar até que razoavelmente. Nascido e criado no Sul do Brasil, um descendente de açorianos e índios entre bisnetos de imigrantes do norte da Itália, na Serra Gaúcha era relativamente comum manter armas de caça em casa. O pai de um amigo, morto por complicações da covid faz pouco, era um pródigo caçador. Por causa dele, aprendi a apreciar coelhos e codornas que ele trazia de suas expedições. Era um caçador licenciado e respeitava a época certa e mantinha alguns pointers, ótimos cães auxiliares. Mas quando o lugar foi ficando menos rural, a funcionalidade das espingardas caiu. Mas sempre foram úteis para espantar raposas, quatis e ladrões de galinha. O pessoal mirava para acertar. Depois era chamar a polícia e rastrear o larápio, que por azar poderia estar se esvaindo no matagal. Coisa rústica que não cabe mais.

Urbano por completo, meu pai teve um revólver calibre 38 em casa por uns tempos, mas eu era muito pequeno para lembrar. Foi coisa da política de então. Meu padrinho andava armado quando viajava, mas meu tio, um ourives que mantinha mais de quilo de ouro no cofre, jamais. “Quem quiser levar, que leve. Em uma semana os lingotes estarão de volta, comprados por um centésimo do valor. Não pagaria nem um segundo revólver”. Meu tio era um malandro compassivo.

Mas outros andavam armados. Comerciantes que lidavam com grandes somas de grana antes do tempo dos depósitos por internet e do Pix. Todavia, a classe média estava mais preocupada em ter carros bacanas, dispositivos eletrônicos modernos, filhos estudando fora, viajar e comer em algum restaurante bacana uma vez por semana. Eu, por interesse histórico, sempre me interessei por armas de mão – e aviões, helicópteros, belonaves, blindados. Tanto que há 20 anos escrevo para publicações de aviação e colaborei com dois livros durante a pandemia.

Pátria armada e indefesa

É um lance diletante. Mas o que isso tem com armas? Bem, são objetos de poder – não vou entrar nessa de compensação de alguma desvantagem anatômica. Assim como são os carros, as motos, a casa na praia, as mulheres jovens curvílíneas e outros viagras espirituais. São as ostentações da vida. Mas desde que Bolsonaro colocou a flexibilização do uso de armas na pauta, há muita gente gastando com pistolas e clubes de tiro. Parece correto. Já entrei em um. Tenho conhecidos militares, policiais e promotores de Justiça que andam armados – e são bem treinados. Mas sentem o peso de portar “o aço”. “O erro é esquecer que você tá armado”, me confessou o capixaba Rubinho, policial que já planeja sua aposentadoria.

Converso com gente que dá tratos ao que parece ser uma nova obsessão nacional. Pergunto qual arma desejariam. Pistola full size, compact ou subcompact? Brasileira ou importada? Carregador monofilar ou bifilar? De aço ou polímero? Mira laser, red dot ou de trítio? Trilhos Picatinny para acoplar penduricalhos? Que tipo de trava? Ação dupla ou simples? Nenhum interessado jamais soube responder qualquer item. É gente que precisaria de apoio psicológico até para tomar injeção. Quem anda armado, não faz o que fez o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, que deixou uma pistola destravada disparar ao cair no chão dentro de um aeroporto. Nunca vi disso nesse Brasil tão inovador em absurdos. Mas ouvi muito algo preocupante. “Fazer um estrago” é uma afirmação que detectei. Contra quem? “Contra quem quer me prejudicar”. Em vez de desconversar, nessa hora lanço a pegadinha. “Já viu um baleado?” Nenhum sequer até agora, muito menos chegaram bem perto para ouvir os barulhos estranhos. Eu já. Cobri quase 100 homicídios, sem contar cinco chacinas e umas quatro revoltas em cadeias e presídios. Inadvertidamente pisei em fragmentos de cérebro espalhados pela cozinha de uma casa invadida por crackeiros. Ainda bem que fui editar política e economia.

E um assassino? Já viram? Posso lembrar do meu ex-chefe Pimenta Neves e de um alucinado menino de 14 anos, que tinha nas costas sete mortes de devedores do tráfico. Com o nariz cheio de cocaína, o adolescente gritava que mataria todos na delegacia, principalmente este repórter, que estava ali por outro motivo. Como é mais fácil ameaçar jornalista, ele jurava que acabaria com minha família. Levou uma bordoada que o levantou da cadeira em que estava algemado. Fiquei impassível, como o Steve McQueen da foto. No lugar da arma, meu bloquinho. Porém, tive mais receio do Pimenta, que baleou uma ex-colega pelas costas. Ele foi o único que me deu vontade de chutar a cara. Nossa pátria armada de nada poderia contra esses caras, criminosos espreitadores, cruéis e covardes.

Glock, Python, Beretta

Mas eu poderia ter armas se mudasse para um sítio ou casa de praia na aposentadoria. Elaborei o que teria. Duas subcompact strike fire Glock 19, pois tenho mãos pequenas. Uma ficaria oculta no carro e outra no quarto. Só que passo a maior parte do tempo no escritório, trabalhando, lendo e assistindo filmes antigos. Teria que deixar a Glock comigo e depois levar para o quarto. Também compraria para meu arsenal imaginário uma subcompact para summer carry. Uma arminha pequena, como a Walther PP/PPK do 007. Mas o bicho é de metal e ia puxar minhas bermudas para baixo. Para defender meu reino de ladrões, comunistas, indígenas, ongueiros, tropas da ONU e demais integrantes das tais classes perigosas que falava Hobsbawn, uma poderosa e estilosa escopeta Beretta 1301 Tactical. Um luxo. E para dar um reforço conceitual, um coldre axilar abrigando um cromadíssimo Colt Python com cano de 4 polegadas – um pouco menor que o usada por Rick Grimes para explodir miolos de mortos-vivos se deslocando lentamente e em linha reta em The Walking Dead. Só ostentação. A Python é uma peça de joalheria, um Rolex calibre 357 magnum, a escopeta garante a intimidação e as pistolas, a confiabilidade desde que Mulder e Scully começaram a alvejar criaturas da noite em Arquivo X.

Só teria um problema. Acho que ninguém visitaria esse Urtigão moderno, o que me deixaria meio perto da solução de Hemingway. Outro ponto é que detesto pegar o carro. Sempre priorizei ter nas proximidades uma padoca ou boteco decentes capazes de me suprir com revigorantes expressos e pães na chapa. E isso não existe no tipo de praia ou interior que frequento de vez em quando. Não dá para ir nesses estabelecimentos respeitáveis que agregam desembargadores aposentados e pedreiros com drops de chumbo e fogo ocultos na cintura. A chance de ser esgorjado pelo chapeiro ou baleado pelo PM que vem cobrir o fechamento do caixa é significativa. Só que fora da cidade há complicações, como a incompatibilidade em carregar escopeta, espetos, talheres e carnes. Melhor seria ficar com a Walther do Bond, que me deixa sem fundilhos. Ou com a Glock 19 toda techno. Mas alguém teria que carregar a escopeta. Melhor desistir dela e da Colt, que me daria dores nas paletas. No máximo ficaria com uma das compact austríacas. Esquecida em uma gaveta, pois nunca carrego nada que bandido gosta. Meu celular é mais ou menos, o dinheiro até aliviaria a tensão, fora isso, nada levo por aí. Apenas me cuido, pois ultimamente desconfio até do cidadão de bem. Vai que roubem minha Glockzinha, calibre 9 mm, que custa uns R$ 8 mil.

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