O episódio em que Luciane Barbosa Farias, conhecida como a “primeira-dama do Comando Vermelho amazonense”, foi recebida no ministério da Justiça continua dando pano para a manga. Conforme o ministro Flavio Dino tentou jogar a culpa em nos secretários Rafael Velasco Brandani e Elias Vaz, sem sucesso, a saída foi polarizar a discussão – e transformar o ocorrido em uma briga entre Direita e Esquerda.
A advogada Natividade Maia, responsável pelo Comitê de Prevenção e Combate à Tortura do Amazonas, deu o primeiro passo. Foi dela que partiu a indicação de que Luciane participasse do encontro em Brasília com o secretário Brandani (imagem). “O que tem de palpável contra essa pessoa? Eu não tenho um único documento oficial, nada, que ligue essa jovem, essa mulher, à organização criminosa”, disse.
Alguém poderia dizer que a certidão de casamento serviria para responder à pergunta de Natividade. Afinal, casos como o de Kay Adams, personagem do filme “O Poderoso Chefão”, dificilmente existem na vida real, em especial no Brasil. Esposa de Michael Corleone, ela não compactua com as práticas criminosas do marido e até se separa dele por conta de suas atividades na Máfia.
Mas vamos dizer que esse argumento seja proveniente de uma visão machista do mundo (afinal, a advogada colocou a palavra “mulher” em sua argumentação para tentar criar uma narrativa diferente ao caso). Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Luciane, juntamente com o marido, foi condenada em segunda instância por lavagem de dinheiro, associação para o tráfico e organização criminosa. A cônjuge de “Tio Patinhas” recebeu uma sentença de dez anos e recorre em liberdade.
Por fim, não existem exatamente contratos de prestação de serviços entre o crime organizado e seus colaboradores. Mas, neste caso, indícios não faltam. A desembargadora Vânia Marques Marinho, do Tribunal de Justiça do Amazonas, escreveu o seguinte na condenação da “Primeira-Dama”: “Luciane Barbosa Farias era a responsável por acobertar a ilicitude do tráfico, tornando o numerário deste com personificação lícita, ao efetuar compra de veículos, apartamentos e até mesmo abrindo empreendimento. Logo, inquestionável é a participação da Apelada na organização criminosa ‘Comando Vermelho’”.
O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, veio em socorro de seu colega de Esplanada. “Há também por trás disso a tentativa generalizada, por parte de extremistas de direita, de a todo momento fabricar escândalos e minar a reconstrução da política de direitos humanos, uma vez que só conseguem oferecer ao país caos e destruição. Num momento em que o Brasil retoma seu rumo, de forma desesperada, determinadas figuras tentam vincular o governo ao crime organizado”, escreveu Almeida nas redes sociais.
Trata-se de uma manobra coordenada do governo para preservar a figura pública de Flávio Dino, bastante arranhada pelo acontecimento. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Siva entrou na dança. “Minha solidariedade ao ministro Flavio Dino, que vem sendo alvo de absurdos ataques artificialmente plantados. Ele já disse e reiterou que jamais encontrou com esposa de líder de facção criminosa. Não há uma foto sequer, mas há vários dias insistem na disparatada mentira”, declarou Lula.
Bem, o problema principal não é exatamente a existência de uma fotografia ou um eventual encontro entre Dino e Luciane, que de fato não houve. A questão é outra, da qual o presidente procura desviar a atenção: uma pessoa ligada ao tráfico de drogas foi recebida no ministério da Justiça, em duas ocasiões, por representantes graúdos da pasta. Além de algo absurdo, isso mostra um despreparo atroz da gestão federal em peneirar interlocutores em audiências oficiais.
Um secretário não pode se reunir com a esposa de um chefão de tráfico, mesmo que ela não tenha nada a ver com o crime (hipótese que, de acordo com a Justiça, não existe). O governo não pode manter relações amistosas com quem esteja, mesmo que indiretamente, ligado a atividades ilícitas.
Isso é simples demais – e nada tem a ver com ideologia política.
Vamos, então, inverter os sinais da equação.
Imaginemos que a mesma Luciane Farias fosse recebida em 2022 pela delegada federal Tânia Fogaça, que era a diretora-geral do Departamento Penitenciário Nacional (o equivalente ao cargo ocupado hoje por Brandani), autarquia lotada na pasta chefiada pelo ministro Anderson Torres, durante o governo de Jair Bolsonaro. Lula, Almeida e outros petistas iriam postar mensagens em defesa de Torres?
Trata-se, evidentemente, de uma pergunta retórica.