Pesquisar
PATROCINADORES
PATROCINADORES

As vísceras do “comércio justo” de Trump

O senador James Beck, ainda em 1884, alertou: “A tarifa é a proteção que o lobo deu ao cordeiro”

“Durante décadas, nosso país foi saqueado, pilhado, estuprado e espoliado por nações próximas e distantes, tanto amigas quanto inimigas”, declarou o presidente Trump no início do mês, ao proclamar estado de emergência nacional e impor as tarifas mais altas desde a Lei Smoot-Hawley de 1930. As bolsas de valores dos EUA perderam mais de 6 trilhões de dólares em valor, e acalorados debates se intensificam sobre se Trump está salvando ou destruindo a economia.

O Secretário de Comércio, Howard Lutnick, afirmou que as tarifas punitivas de Trump representam “a reorganização do comércio justo.” Já o Secretário do Tesouro, Scott Bessent, declarou: “Pela primeira vez em décadas, provavelmente desde que eu estava na faculdade, vamos ver comércio justo.”

Na semana passada, o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) divulgou seu relatório anual de 377 páginas sobre Barreiras ao Comércio Exterior, recapitulando exaustivamente os abusos cometidos por cada país que, segundo o documento, estaria trapaceando contra os Estados Unidos. Felizmente para o governo Trump, os checadores de fatos da mídia praticamente ignoraram o relatório altamente tendencioso.

Mas um dos casos de maior destaque ilustra bem o absurdo das novas definições de “comércio justo” promovidas por Trump.

O USTR afirmou que a maioria das “exportações dos EUA para o Vietnã enfrenta tarifas de 15% ou menos.” Mas, durante a cerimônia no Jardim das Rosas, Trump apresentou um gráfico alegando que as “tarifas cobradas pelo Vietnã aos EUA” chegavam a 90%. Ele estabeleceu tarifas punitivas em apenas metade desse valor porque queria ser “gentil”; as exportações vietnamitas foram “gentilmente” atingidas com uma tarifa de 46%. Segundo Trump, a tarifa de cada país era baseada na “taxa combinada de todas as tarifas, barreiras não-monetárias e outras formas de trapaça.”

Na última sexta-feira, Trump anunciou que havia conversado com o Secretário-Geral do Partido Comunista do Vietnã, e que o Vietnã “quer reduzir suas tarifas a ZERO, se conseguir fechar um acordo com os EUA.” Mas Peter Navarro, principal assessor comercial de Trump, debochou da proposta: “Quando eles dizem que vão zerar as tarifas, isso não significa nada pra nós, porque o que importa é a trapaça nas barreiras não tarifárias.”

E quais seriam essas supostas barreiras não tarifárias absurdas impostas pelo Vietnã? O relatório do USTR criticou o país por se recusar a importar bens de consumo usados; peças automotivas de segunda mão; motores a combustão com menos de 30 cavalos de potência… e equipamentos médicos recondicionados.” Será que o governo Trump acredita mesmo que vai equilibrar o déficit comercial com o Vietnã exportando nossos cortadores de grama usados, câmbios quebrados de Fords velhos e seringas descartadas?

O etanol é, supostamente, um exemplo clássico das barreiras comerciais desleais do Vietnã. O USTR reclamou que o país “só permite misturas com 5% de etanol em um dos seus três tipos de gasolina.” O governo dos EUA está pressionando o Vietnã para que “eventualmente adote uma mistura com 10% de etanol.” No entanto, o etanol é um combustível inferior à gasolina e contribui para a poluição do ar. Nos Estados Unidos, o etanol é notório por danificar motores de carros.

Mas os EUA têm etanol de sobra para exportar porque sua produção é fortemente subsidiada desde a década de 1970. Na semana passada, o governo Trump anunciou mais US$ 537 milhões em novos subsídios para a produção de biocombustíveis. No entanto, pressionar o Vietnã a comprar mais etanol subsidiado pelo governo dos EUA é considerado uma vitória do “comércio justo”, porque, aparentemente, Deus quer que os agricultores de milho de Iowa fiquem ricos. Condenar países estrangeiros por não comprarem produtos que os EUA só conseguem vender graças a subsídios governamentais é o retrato da hipocrisia do comércio justo à moda Trump.

O governo Trump também está indignado com o fato de o Vietnã proibir a importação das chamadas “vísceras brancas” dos EUA, incluindo “moelas de frango, estômagos e intestinos de boi e porco.” Segundo Washington, o Vietnã não tem justificativa científica para não autorizar novos frigoríficos americanos interessados em exportar esses produtos. Vale lembrar que vísceras podem estar contaminadas com salmonela, micotoxinas, parasitas e metais pesados.

Esse entusiasmo do governo dos EUA por vísceras, porém, não se estende ao haggis, prato tradicional escocês que está proibido de entrar no país desde 1971. O haggis leva pulmão de carneiro, ingrediente que o Departamento de Agricultura dos EUA considera de alto risco para transmissão de doenças alimentares.

Mas mesmo que o Vietnã comprasse todos os cortadores de grama usados e todas as sobras de açougue americanas, provavelmente ainda haveria um grande déficit comercial entre as duas nações. As tarifas de penalização de Trump foram derivadas, em grande parte, de uma fórmula simplista que pegou “o déficit comercial que os Estados Unidos têm com essa nação e o dividiu pelas exportações que esse país enviou” para os EUA, como explicou o New York Times.

Um funcionário do governo Trump declarou que as tarifas de penalidade foram “baseadas no conceito de que o déficit comercial que temos com qualquer país é a soma de todas as práticas comerciais injustas, a soma de todas as trapaças”. Lamentavelmente, o governo não forneceu nenhuma evidência para sustentar essa afirmação. Trump declarou no domingo que, enquanto os déficits comerciais persistirem, as tarifas de penalidade também persistirão.

Basear tarifas punitivas em dados de fluxo comercial é como um juiz federal sentenciar um criminoso com base no peso do réu, e não no crime que ele cometeu. Mas pouco importa se as declarações de Trump não têm nenhuma credibilidade intelectual ou moral. Sua proclamação de emergência foi suficiente para ampliar enormemente seu poder arbitrário sobre a economia americana.

Os decretos de Trump escancaram como o conceito de “comércio justo” virou uma espécie de canonização moral da arbitrariedade política pura e simples. No fim das contas, comércio justo é aquilo que os políticos dizem que é, pelo menos até que eles mudem a definição do que consideram justo. Será que Trump vai explicar por que tornar o comércio exterior totalmente dependente de decretos presidenciais representa um triunfo da justiça?

Na noite de domingo (06/04), Trump declarou: “Um dia as pessoas vão perceber que as tarifas, para os Estados Unidos da América, são algo muito belo!” Mas quanto os americanos vão ser obrigados a pagar por esse esquema de “salvação tarifária” de Trump? Nunca se esqueça do alerta feito pelo senador James Beck, ainda em 1884: “A tarifa é a proteção que o lobo deu ao cordeiro.”

__________________________________________________

Por James Bovard

Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/6kj5M

Compartilhe

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar

©2017-2020 Money Report. Todos os direitos reservados. Money Report preza a qualidade da informação e atesta a apuração de todo o conteúdo produzido por sua equipe.