No Capítulo 11 do livro The Constitution of Liberty, Friedrich Hayek apresenta uma genealogia abrangente da liberdade, situando seu verdadeiro nascimento na evolução constitucional da Inglaterra do século XVII. “A liberdade individual nos tempos modernos”, ele escreve, “dificilmente pode ser rastreada além da Inglaterra do século XVII.” Essa afirmação moldou gerações de liberais clássicos e libertários que passaram a ver a Revolução Gloriosa, o common law e o Parlamento como a fonte original da liberdade moderna. No entanto, do ponto de vista da tradição liberal clássica mais ampla, especialmente de sua vertente austríaca, a genealogia de Hayek não é apenas incompleta, mas também incomumente limitada.
Embora Hayek esteja certo ao enfatizar a importância das tradições e instituições jurídicas na garantia da liberdade, seu relato reflete um certo anglocentrismo que contrasta com suas próprias ideias austríacas sobre a natureza da ordem emergente. Além disso, ele ignora o notável legado de descentralização jurídica, competição institucional e liberdade cívica que floresceu no continente europeu muito antes de Locke, Coke ou da Declaração de Direitos inglesa.
Ralph Raico, um dos maiores historiadores do liberalismo continental e discípulo de Hayek, oferece uma correção necessária a essa narrativa. O trabalho de Raico revela uma Europa rica em tradições jurídicas concorrentes e em experimentações liberais, desde as repúblicas italianas e as Cidades Livres alemãs até liberais franceses como Benjamin Constant e Frédéric Bastiat. Sugerir, como faz Hayek, que as raízes da liberdade estão quase exclusivamente na experiência inglesa é fazer uma injustiça com o vasto e diverso pano de fundo do desenvolvimento liberal.
As cidades-estado italianas: liberdade republicana antes de Locke
Séculos antes da Guerra Civil Inglesa, as cidades-estado italianas de Florença, Veneza e Gênova promoveram sistemas de autogoverno enraizados na liberdade mercantil e na participação cívica. Florença possuía sua Signoria, um conselho executivo selecionado por sorteio entre corporações de ofício e famílias da elite, moldado pelas inovações políticas dos humanistas cívicos como Maquiavel. Veneza, com seu poderoso Dux (Doge), Senado e Grande Conselho, operava sob uma constituição mista complexa e notavelmente estável, desenhada para evitar a tirania e o domínio de facções. Gênova, embora menos estável, também contava com instituições republicanas e um Dux, ainda que seu sistema político fosse mais suscetível a disputas aristocráticas e à rotatividade institucional.
Essas repúblicas frequentemente reconheciam os direitos de propriedade, operavam com leis comerciais codificadas e desenvolveram sistemas judiciais relativamente independentes da autoridade monárquica. Seu republicanismo, com todas as suas limitações, estava baseado na liberdade comercial, na previsibilidade jurídica e em um discurso público vibrante. Embora os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, de Maquiavel, tenham um tom mais humanista cívico do que propriamente liberal, as estruturas institucionais da Itália renascentista claramente cultivaram elementos centrais da liberdade sem seguir o caminho inglês da monarquia constitucional e do common law.
Do ponto de vista austríaco, o que mais se destaca nessas repúblicas não é a centralização estatal, mas sim ordens descentralizadas e competitivas. Não havia um Leviatã; em seu lugar, existiam jurisdições concorrentes, arbitragem privada e uma formação jurídica bottom up, promovida por corporações de mercadores e cidades com cartas de autonomia.
O Sacro Império Romano-Germânico: policentrismo jurídico como baluarte da liberdade
Talvez em nenhum outro lugar da Europa a liberdade tenha sido tão vividamente preservada por meio da descentralização quanto no Sacro Império Romano-Germânico. Frequentemente descartado como um relicário incoerente e atrasado, o Império foi, na verdade, uma maravilha de governança policêntrica. Com centenas de ducados, principados, bispados e Cidades Livres, o Império criou um espaço para um grau notável de autonomia política e pluralismo jurídico.
Raico enfatizava que a estrutura fragmentada do Império ajudou a impedir o surgimento de estados centrais absolutistas em vastas regiões de língua alemã. Cidades como Hamburgo, Lübeck e Nuremberg funcionavam com ampla autogestão e leis comerciais codificadas. Os tribunais imperiais, ainda que imperfeitos, ofereciam uma forma de resolução supranacional de disputas, muito distante do modelo monopolista da jurisprudência inglesa.
Do ponto de vista austríaco, o Império é um exemplo emblemático de concorrência em governança. Nenhuma autoridade única podia exercer poder irrestrito, e os indivíduos frequentemente podiam “votar com os pés”, mudando-se para jurisdições mais favoráveis ao comércio, à religião ou à liberdade pessoal. Essa descentralização funcionava como um freio à tirania, um freio muito mais alinhado com a teoria geral da liberdade de Hayek do que a centralizada Coroa Inglesa do século XVII.
A Igreja Católica e o direito canônico: as primeiras tradições do Estado de Direito
Outra omissão crítica no relato de Hayek é o papel da Igreja Católica no desenvolvimento de uma tradição de Estado de Direito. O direito canônico, especialmente conforme codificado por Graciano e posteriormente elaborado por juristas medievais, introduziu princípios como a igualdade perante a lei, o devido processo legal e a limitação da autoridade arbitrária. Os tribunais eclesiásticos ofereciam espaços para apelação e proteção – às vezes até contra governantes seculares.
A visão de Hayek do Estado de Direito como uma restrição ao poder coercitivo encontra aqui uma de suas primeiras manifestações. A Igreja medieval não foi um modelo de liberdade, mas, por meio de suas instituições jurídicas e contribuições intelectuais, lançou as bases para ideias sobre direitos, contratos e a lei como autoridade superior ao mero capricho dos governantes. Raico frequentemente creditava aos pensadores jurídicos católicos o mérito de preservar as tradições clássicas do direito natural, que mais tarde influenciariam teóricos liberais como Grotius, Locke e Mises.
A ideia de que a lei deve ser preexistente, geral e aplicada igualmente a governantes e súditos – um tema central em Hayek – foi mantida viva, em parte, por pensadores escolásticos e pelas instituições da Igreja. Ignorar esse legado é mutilar a verdadeira linhagem histórica do Estado de Direito.
Hayek contra Hayek: os limites de seu anglocentrismo
A ironia é que o próprio Hayek, em outros contextos, demonstrava profunda apreciação por ordens jurídicas descentralizadas e pelo surgimento espontâneo do direito a partir do costume e da tradição. Seu elogio ao common law deve ser entendido como uma aprovação mais ampla a estruturas jurídicas em evolução e não legisladas – exatamente o tipo encontrado nas cidades-estado italianas, no Império policêntrico e nos tribunais eclesiásticos.
Por que, então, o foco tão restrito na Inglaterra? A resposta pode residir, em parte, no público-alvo de Hayek. Escrevendo em uma época em que o liberalismo anglo-americano era a tradição intelectual dominante, Hayek pode ter sentido a necessidade de ancorar seus argumentos em marcos constitucionais familiares. No entanto, esse movimento retórico corre o risco de distorcer a herança liberal mais profunda, que inclui figuras como Pufendorf, Grotius e os posteriores ordo-liberais alemães, muitos dos quais atuaram bem longe de Westminster.
Do ponto de vista austríaco, essa limitação é especialmente problemática. Economistas e pensadores austríacos, como Mises e Rothbard, sempre enfatizaram a contingência histórica, a diversidade institucional e o individualismo metodológico. Afirmar que a liberdade “começou” na Inglaterra do século XVII é impor uma narrativa teleológica incompatível com a perspectiva austríaca mais ampla.
Conclusão: rumo a uma genealogia liberal mais ampla
O livro The Constitution of Liberty, de Hayek, continua sendo uma das defesas mais importantes do liberalismo clássico no século XX — ainda que problemática e insuficiente devido à sua concessão relutante ao estado de bem-estar social. Da mesma forma, no Capítulo 11, seu relato sobre as origens da liberdade é falho. Ao traçar a liberdade moderna exclusivamente à Inglaterra do século XVII, Hayek negligencia o vasto panorama de experimentações jurídicas e institucionais que a precederam e, em muitos aspectos, anteciparam a experiência inglesa.
A obra de Ralph Raico funciona como um contrapeso essencial. Sua investigação do liberalismo continental, seus pensadores, instituições e tradições intelectuais, demonstra que a liberdade não é produto de uma única nação ou de uma única revolução, mas o resultado emergente de diversos experimentos voltados à limitação do poder e à defesa da propriedade.
Para estudantes da economia austríaca e do liberalismo clássico, a verdadeira lição é esta: a liberdade não surge de projetos predefinidos ou de monarcas que, por acaso, implementam boas constituições, mas da concorrência, da descentralização e de normas culturais profundamente enraizadas que favorecem a autonomia individual.
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Por Joseph Sollis-Mullen
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/wibef