Na semana passada, escrevi sobre um livro do radialista Elliot Mintz, que fala sobre sua amizade de anos com John Lennon e Yoko Ono. Esta leitura me provocou um surto musical: fiquei horas e horas ouvindo canções dos Beatles e da carreira solo de Lennon. E cheguei à conclusão de que ele tinha a capacidade única, difícil de ver em outros músicos — a de criar uma atmosfera onírica em algumas de suas melodias e letras. Isso pode ver em obras como “A Day in the Life”, “Lucy in the sky with Diamonds”, “Strawberry Fields Forever”, “Being for the benefit of Mr. Kite” e “I am the Walrus”.
Nesta maratona musical, nenhuma letra me causou tanto impacto quanto a da canção “Across the universe”. Estas palavras, escritas em 1968, após o retiro espiritual que a banda fez na Índia, são de uma sabedoria imensa (a faixa só seria conhecida pelo público em 1970, com o lançamento do álbum “Let it be”).
Impressionante como John Lennon produziu algo tão poderoso com 27 anos de idade – uma fase em que ninguém reflete muito sobre a própria existência. Essa letra saiu de uma vez só, após uma briga com sua primeira mulher, Cynthia, que disse as duas primeiras estrofes da canção.
Para mim, essa canção é um belo resumo da vida.
Os acontecimentos de nosso cotidiano acabam nos atingindo como a primeira frase da música (“Words are flowing out/ Like endless rain into a paper cup” – “Palavras estão fluindo/ Como uma chuva sem fim em um copo de papel”). Nossa existência acaba sendo bombardeada por episódios que fluem aparentemente sem nexo (como as palavras às quais Lennon se refere) e transbordam como uma torrente de água em um copo de papel. Com isso, não conseguimos refletir apropriadamente sobre os acontecimentos de nossa trajetória e vamos vivendo sem pensar sobre coisas que realmente nos incomodaram (ou nos deixaram maravilhados).
Os versos seguintes reforçam essa mesma ideia (“They slither while they pass/ They slip away across the universe – “Elas deslizam enquanto passam/ Elas escorrem pelo universo). Os fatos da vida (como os termos citados na canção) passam por nós como se tentássemos segurar água em nossas mãos.
Em seguida, Lennon canta “Pools of sorrow, waves of joy/ Are drifting through my opened mind” (“Poças de tristeza, ondas de alegria/ Estão à deriva pela minha mente aberta”). Ele trata da falta de linearidade em nossas trajetórias, que oscilam de acordo com esses momentos catárticos de emoções conflitantes. “Possessing and caressing me/ Across the universe” (“Possuindo-me e me acariciando/ Através do universo”) vem em seguida, fechando o raciocínio.
Após um mantra que ele aprendeu na Índia, Jai Guru Deva, Om (“Glória ao mestre divino”), ele arremata: “Nothing’s gonna change my world” (“Nada vai mudar o meu mundo”).
Conforme envelhecemos, parece que deixamos de ser crianças. Mas, na verdade, estamos apenas escondendo dentro de nós aquela pessoa inocente que já fomos um dia. Como o planeta Terra, há uma crosta firme, quase impenetrável, que protege o núcleo que borbulha e ferve por dentro e, neste centro, está a nossa criança interior.
Este ser cheio de inocência é preservado para nunca vai mudar – e, para mim, esse é o mundo que Lennon diz que não vai ser transformado. A criança dentro de nós fica escondida durante muito tempo. Mas aparece muito quando temos filhos ou netos. É quando temos a coragem de mostrá-la para os nossos descendentes.
Neste processo, podemos reconhecer o que acontece dentro das almas inocentes de nossos filhos. E perceber o quanto eles ficam perplexos quando são feridos, o que acaba aumentando a espessura da crosta que protege aquilo que está dentro deles.
Essa é a hora em que temos de ensinar como superar seus problemas e manter a fé na vida. Estes desafios passam e nós crescemos por dentro. E, lá no fundo, está aquela criança, protegida e quieta, pronta para nos ajudar, encastelada em um mundo que nunca vai mudar.