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Os negacionistas perderam. Isso significa que Doria ganhou?

Nos anos 1980, em plena guerra das colas, quando Coca e Pepsi se digladiavam pela liderança do mercado americano de refrigerantes, um livro ganhou destaque nas prateleiras de obras não ficcionais. A publicação se chamava “The Other Guy Blinked” (“O Outro Cara Piscou”, em português) e contava a trajetória do autor, o CEO da Pepsi, Roger Enrico. Ele havia conseguido fazer com que suas vendas, depois de uma batalha de décadas, ultrapassassem as da Coca-Cola, mesmo que por um curto período de tempo. Um feito e tanto. E o título fazia alusão ao jogo em que duas pessoas precisam se encarar até que alguém pisque os olhos e perca a partida.

O epíteto dado por Enrico a seu livro tem muito a ver com a disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria. Os dois, que estão às turras desde o ano passado, com vistas às eleições presidenciais de 2022, discutiram até em meio à maior crise sanitária já vista no país, com a escassez de oxigênio na cidade Manaus.

Pobre do país que vê duas de suas principais lideranças políticas se engalfinhando quando deveriam se unir em prol do bem comum. Foi dentro deste clima que a Anvisa julgou os pedidos de emergência para uso de imunizantes e desempenhou seu papel técnico como se esperava, liberando Oxford e CoronaVac.

O duelo verbal entre Bolsonaro e Doria, que já estava fervendo, evoluiu para uma disputa pela primeira fotografia de vacinação no país. Tanto o presidente como o governador queriam protagonizá-la. E, na falta do imunizante de Oxford, que ainda não chegou em quantidades industriais ao Brasil, o governo federal tentou trazer vacinas indianas para que o Planalto pudesse estrelar a primeira aplicação em solo brasileiro. Mas o tiro saiu pela culatra e Bolsonaro teve de assistir pela televisão, ontem, Doria ao lado da primeira pessoa a ser vacinada no Brasil, uma enfermeira paulistana.

Para piorar, o ministério da Saúde requisitou um volume gigantesco de lotes de CoronaVac para distribuí-la entre o país. Ou seja, Doria ganhou duplamente. Apareceu na foto da primeira vacinação e o imunizante produzido pelo Butantan será usado na campanha nacional.

Essa é uma derrota política para Bolsonaro – mas este assunto jamais deveria ter ocupado a ribalta eleitoral, especialmente porque ainda falta muito tempo para o pleito do ano que vem. De qualquer forma, os grandes derrotados não são necessariamente os governistas , mas sim os negacionistas.

Houve duas etapas em que esse grupo esteve nas redes sociais para bagunçar o coreto (vamos esquecer os meses em que estes malucos ficaram afirmando que a pandemia do coronavírus era uma invenção da imprensa e que tudo não passava de uma “gripezinha”).

Em um primeiro momento, quiseram introduzir a dúvida nas pessoas por conta da procedência do imunizante. A CoronaVac não prestaria simplesmente por ser chinesa e até acabou ganhando apelidos como o de “shing-ling”, dado comumente a eletrônicos chineses que não funcionam direito. Essa turma é teimosa em desfazer deste DNA chinês. Mesmo quando se afirma que a China é, hoje, um dos maiores polos farmacêuticos do mundo, e que outros fabricantes mundiais utilizam inúmeras matérias-primas vindas do parque industrial chinês, estes negacionistas batem o pé e até hoje insistem em dizer que estão corretos.

Em um segundo momento, disparou-se contra o índice de eficácia divulgado pelo Instituto Butantan, de 50,38 %, comparando-o com outras vacinas disponíveis no mercado. Porém, o fato é que, no passado, lidamos com vacinas com índices semelhantes, mas nunca se questionou os agentes quais seriam suas taxas de êxito.

Diante disso, criou-se uma rixa nas redes sociais e a claque negacionista se esforçou em desclassificar a vacina do Butantan. Curiosamente, o processo de imunização do governo terá de começar justamente com o uso do imunizante da Sinovac, diante da indisponibilidade de outros inoculantes.

Esse pessoal perdeu o braço de ferro. Isso quer dizer que o presidente saiu chamuscado dessa pendenga? Saiu com as extremidades queimadas, sem dúvida. Mas uma pesquisa da revista EXAME divulgada na sexta-feira mostrava a popularidade de Bolsonaro praticamente estável, com aprovação em torno de 37 %.

Percebe-se que o presidente perdeu prestígio junto à classe média, pois hoje há gente pelos grupos de WhatsApp, Twitter e Instagram falando em impeachment (que precisaria da cumplicidade do novo presidente da Câmara, a ser escolhido em 1 de fevereiro, para prosperar. Se o vencedor for Arthur Lira, no entanto, esse tipo de proposta jamais chegará ao plenário). Junto às classes C, D e E, no entanto, Bolsonaro continua em alta. E seus números de pesquisa, hoje, o colocariam em um segundo turno caso as eleições fossem realizadas agora.

Resta saber se essa popularidade, que claramente foi turbinada pelo auxílio emergencial, vai se manter ao longo do ano, especialmente se esse dinheiro deixar de ser pago aos mais carentes.

Por outro lado, quanto Doria ganhou com isso? Ele foi o político que mais antagonizou com Bolsonaro durante os últimos meses e, com o triunfo da CoronaVac, deve receber alguns louros. Mas ainda tem um osso duro de roer pela frente: melhorar sua popularidade junto aos eleitores da capital, que ainda não engoliram o abandono à prefeitura apenas 14 meses após a posse. Um exemplo desse descontentamento é uma mensagem de Twitter que está circulando com sucesso nas redes. Ela diz o seguinte: “O Doria já ganhou uns 20 pontos comigo nos últimos dias. Saldo atual agora é de -3475”.

Voltando a Roger Enrico: eu o entrevistei em 1986 para fazer uma reportagem sobre a investida da Pepsi no mercado de São Paulo. Perguntei a ele qual tinha sido o momento crucial para ele na briga com um oponente do tamanho da Coca-Cola. A resposta: o lançamento da “New Coke”, um refrigerante mais adocicado, que abalou as vendas do gigante de Atlanta. “Mais importante do que acertar é mexer com seu adversário a ponto de fazê-lo cometer erros, como o da New Coke”, disse Enrico.

Esse é exatamente o tom da briga entre Bolsonaro e Doria. Não basta acertar. É preciso, também, fazer o adversário errar – e, no atual nível de adrenalina, errar feio.

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