Quando adolescente, não perdia um só episódio do programa Canal Livre, apresentado pela TV Bandeirantes até hoje. Exibido às noites de domingo, trazia sempre algum personagem interessante como entrevistado por uma bancada de jornalistas e personalidades. Uma fórmula vencedora que trouxe de Mario Vargas Llosa a Ulysses Guimarães, passando por vários cantores, cineastas, teatrólogos e economistas. Como o bate-papo era longo, durando em alguns casos mais de uma hora, a diversidade de interlocutores era essencial para deixar alto o engajamento do telespectador.
Lembro especialmente de um programa que girou em torno de Caetano Veloso. Houve uma série de assuntos intrigantes, com respostas inteligentes. Até que se começou a discutir feminismo. Alguém perguntou a Caetano se ele lavava pratos em casa. A resposta foi mais ou menos o seguinte: “Adoro lavar prato. É uma coisa inebriante para mim. A passagem do sujo para o limpo, diante de seus olhos, é algo mágico”.
Ele, evidentemente, não usou essas palavras – mas o sentido foi exatamente esse. Muitos deslumbrados se sentiram inspirados por essa declaração. Para mim, no entanto, foi uma das maiores bobagens que já escutei na vida. A partir daí, cunhei uma expressão que uso até hoje: “Síndrome de Caetano Veloso”. Ela acomete pessoas que acham estar falando coisas inteligentes e, no embalo deste arrebatamento, acabam dizendo asneiras. Anos depois disso, Gilberto Gil, irmão de armas de Caetano, disse que o amigo, quando ficava entusiasmado, falava demais (para fazermos justiça ao personagem em questão, ele pode ser um entrevistado desastrado em determinados momentos, mas é um compositor e intérprete de mão cheia).
Ontem, tomei conhecimento de algo que me pareceu se encaixar perfeitamente na “Síndrome de Caetano Veloso” – aquela coisa que parece ser algo inteligente, mas que no fundo não é. Trata-se da proposta de um youtuber segundo a qual os adolescentes deveriam ser poupados da leitura de clássicos da literatura. Esses livros, por ser muito chatos, criariam um trauma que acompanharia as pessoas durante a vida inteira. Dessa forma, mesmo na idade adulta, esses adolescentes jamais consumiriam a obra de Aluísio de Azevedo, Machado de Assis ou Eça de Queiroz. Portanto, o melhor seria destinar à garotada gemas da literatura juvenil.
Por que isso é uma asneira?
Há várias razões para isso. A primeira é que tirar matérias chatas do currículo é um precedente perigoso. Afinal, o que é maçante para um pode ser um verdadeiro néctar intelectual para outro. Vejamos o caso de um quesito qualquer de matemática, como o logaritmo (matéria, por sinal, na qual tirei dez nas duas provas que fiz no Ensino Médio). Trata-se de algo considerado difícil pelos estudantes e mesmo chato por muitos. Mas imagino que meus colegas de escola que escolheram a faculdade de engenharia adoraram esse assunto.
Vamos transportar essa lógica youtuber para a matemática. É o mesmo que afirmar o seguinte: vamos tirar o logaritmo do currículo escolar porque pode traumatizar os alunos com interesses em Ciências Humanas, que jamais se interessarão por esse assunto quando estiverem mais velhos. Se fizéssemos isso, poderíamos cortar o ensino de várias pérolas da matemática do currículo escolar. Isso seria correto? Claro que não.
Clássicos da literatura não proporcionam exatamente uma leitura fácil. Obras como “Iracema” têm uma narrativa demorada e enfadonha para os padrões atuais. Mas servem não apenas para nos mostrar aspectos literários, mas também históricos. No caso do livro de José de Alencar, podemos ver claramente como a escola dos escritores românticos valorizavam a natureza, o nacionalismo e o idealismo. Quando confrontamos o Romantismo com o Iluminismo, corrente filosófica que deu as cartas no século anterior, temos diante de nós um panorama histórico que pode ser fascinante para uns e absolutamente entediante para outros.
Jogar todos os clássicos no mesmo balaio também é um sinal de raciocínio raso. “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, e “Senhora”, de José de Alencar, são obras completamente diferentes de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz. Banir todos os clássicos das escolas significa tirar dos estudantes a possibilidade de ler a fina ironia de Machado ou o estilo impecável de Eça.
Os defensores do youtuber podem dizer que seria possível eliminar apenas as obras maçantes. Mas quem vai decidir isso? E como vamos substituir esses livros no programa de ensino? O que daremos aos adolescentes para ler? As obras completas de J. K. Rowling?
Essa história lembra a proposta de boicote da Natura por aqueles se sentiram ofendidos pela inclusão de Thammy Gretchen em uma campanha para os dias dos pais. Quem dizia que iria boicotar os produtos da empresa eram, em sua maioria esmagadora, pessoas que nunca os havia comprado na vida. Temos aqui algo semelhante. São pessoas que não gostaram de ler os clássicos dizendo que poderiam lê-los no futuro se tivessem sido privados de seu estudo na adolescência. O gosto pela leitura, no entanto, se dá por hábito. E conheço uma infinidade de pessoas que revisitou com prazer alguns dos clássicos lidos na escola por obrigação – ao contrário do que diz o rapaz que ganha a vida fazendo vídeos e criando polêmicas na plataforma social.
Mais uma vez, caímos na esparrela de se discutir uma ideia estapafúrdia que reforça ainda mais a preguiça e o mimimi. O currículo escolar vai se adaptar aos novos tempos, isso é certeza. Mas se dermos às crianças uma educação somente com coisas palatáveis e divertidas, construiremos uma geração sem nenhuma garra, concentração ou competitividade. Coisas chatas fazem parte do mundo real. Se não lidarmos com elas na escola, corremos o risco de tomar bordoadas tamanho família na maturidade.
Ao contrário do que dizem muitos por aí, a vida da nova geração não precisa ser suavizada. Em vez disso, é necessário torná-la mais difícil. Propor desafios e prepará-la para toda a sorte de problemas que surgirão no mercado de trabalho e no convívio familiar. Educar não é necessariamente abrandar o lado difícil da existência. É apontar caminhos, valores e juízos, que se obtêm com a construção contínua de caráter. Infelizmente, não existe caminho brando para isso.