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Quando pedem o cancelamento do Diabo que veste Prada

Tinha planos para escrever sobre Paulo Francis, que completaria 90 anos nesta data. Hoje, no entanto, depois de presenciar alguns debates no ambiente digital, pretendo me debruçar sobre outro tema, que também tem uma ligação com o jornalismo – ou melhor, com uma jornalista em particular. Este caso, que ganhou as redes sociais, versa sobre o comportamento supostamente tirânico dessa profissional de imprensa e foi veiculado em um site de variedades. A conduta desta pessoa criou um clima tão tenso no ambiente que comanda que o banheiro do local, segundo depoimentos colhidos, é mais usado para esconder lágrimas do que para meras necessidades fisiológicas.

O texto faz uma comparação direta entre a jornalista e a personagem Miranda Priestly, a editora de “O Diabo Veste Prada”. Não deixa de ser interessante uma pessoa da vida real ter semelhanças com uma figura de ficção que, por sua vez, foi baseada em alguém de carne e osso (Lauren Weisberger, a autora do livro, foi assistente de Anna Wintour, editora-chefe da edição americana da revista Vogue e usou essa experiência para escrever sua obra mais famosa).

Vou deixar os nomes de lado, pois não quero botar mais lenha na fogueira, mas posso dizer duas coisas sobre essa profissional: foi minha subordinada uma vez, quando me impressionou positivamente com sua competência, e, apesar de ter o mesmo sobrenome que o meu, não é minha parente.

Feito o disclaimer, percebo que houve uma espécie de linchamento digital, mais um movimento na linha da cultura do cancelamento. Li depoimentos de pessoas pedindo a cabeça da jornalista, alguns deles amigos meus, que não pararam para dar à personagem da matéria o benefício da dúvida.

Por que é preciso oferecer esse benefício? Conheço a chefia desta editora e sei do caso em que um diretor de redação foi demitido por assédio moral – algo raríssimo na história do jornalismo brasileiro. Portanto, me parece estranho que essa regra tenha funcionado para um medalhão do jornalismo e tenha sido ignorada nos últimos anos, só pelo fato de a assediadora ser uma mulher.

A revolta das redes sociais é pelo exercício do autoritarismo em um ambiente de trabalho, que já era uma conduta grave nesses tempos politicamente corretos, mas se transformaram em um verdadeiro pecado capital com a pandemia.

As redações sempre foram palcos de explosões das chefias. Presenciei inúmeros ataques de nervos. Fui alvo de algumas broncas memoráveis quando jovem. Isso me deixou traumatizado? Não. Fez de mim um chefe tirânico? Negativo (a cada situação dessas, eu fazia uma nota mental: “nunca vou me comportar assim”). Para compreender esse caso, contudo, é preciso entender uma coisa: as redações de jornais e revistas (e as de telejornais) trabalham com deadlines inflexíveis. Assim, há tarefas que precisam ser cumpridas com rapidez e qualidade – o que nem sempre ocorre.

O texto é algo importantíssimo dentro deste processo. Cada veículo tem um estilo ou normas especificas. E os jornalistas precisam se adaptar a esses perfis. Mas, muitas vezes, repórteres e redatores agem como se os meios de comunicação é que tivessem de se amoldar a suas peculiaridades. Além disso, cada chefe tem suas idiossincrasias. A minha, por exemplo, é preferir palavras mais simples em detrimento das mais complicadas. Para mim, o uso de um vocabulário extenso se justifica para não se repetir durante um artigo (acima, vê-se exatamente isso. Primeiro usei a palavra “peculiaridades” e depois “idiossincrasias”). Também ofereço aos leitores e o exemplo do verbo “comercializar”, que jovens jornalistas adoram usar. É muito melhor e mais simples utilizar “vender”. Mas muitos preferem uma linguagem mais rebuscada.

Dentro deste cenário, pergunto: como lidar com alguém que faz um erro, é advertido e o repete? De novo. E de novo. E mais uma vez. Imagine-se tendo de lidar com esse tipo de situação, diante de deadlines de fechamento e com o pessoal da gráfica ligando de dois em dois minutos, pedindo a versão final do arquivo? Depois de pegar o mesmo engano pela décima vez, você chamaria a atenção de seu subordinado com delicadeza e um sorriso nos lábios?

Outro dia, falando sobre a cultura do cancelamento, lancei a seguinte questão: Steve Jobs, um legítimo representante dos bullies, teria espaço neste mundo no qual todos têm de se tratar com cortesia plena? Dificilmente. Ao ver uma nuvem de camaradagem pairar nas videoconferências que ocorrem atualmente, fico imaginando como iremos preparar nossos colaboradores para confrontar uma concorrência feroz somente na base da motivação e do exemplo. Será possível?

Os empreendedores, que precisam matar um leão por dia, como ficam nesse processo? Precisam ter a faca nos dentes para lidar com o mundo lá fora e ter flores nas mãos para lidar com sua própria equipe?

Não estou fazendo a apologia do ambiente tóxico nem da tirania. Muito pelo contrário. Exerço a chefia desde os 25 anos de idade e tenho centenas de pessoas que podem atestar que meu estilo de comando não pode ser considerado agressivo (embora já tenha experimentado momentos de pura raiva, admito). Estou apenas colocando em perspectiva reações extremadas ocorridas no ambiente frenético das redações, além de dar o benefício da dúvida a quem foi acusado. Talvez seja bom recorrer ao aniversariante do dia, Paulo Francis (se houver uma chance, escreverei sobre ele noutro dia da semana), e ver o que um dos jornalistas mais politicamente incorretos do Brasil diria se fosse o alvo do tal artigo sobre o despotismo nos veículos: “Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. É tão incomum isso na nossa imprensa que as pessoas acham que é ofensa. Crítica não é raiva. É crítica”.

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