Nem tudo que reluz é ouro

Crédito: Ueslei Marcelino - 8.jan.18/Reuters Brazil's Finance Minister Henrique Meirelles (L) looks on near Brazil's Planning Minister Dyogo de Oliveira during a news conference in Brasilia, Brazil January 8, 2018. REUTERS/Ueslei Marcelino ORG XMIT: UMS7
Henrique Meirelles (Fazenda) e Dyogo Oliveira (Planejamento) durante entrevista sobre a 'regra de ouro'

O debate sobre finanças públicas começou o ano animado. Após indicar que cumpriu a meta fiscal de 2017 com folga, a equipe econômica se viu forçada a iniciar e logo depois cancelar o debate sobre a "regra de ouro" do Orçamento.

No seu sentido mais amplo, regra de ouro é um princípio ético segundo o qual não devemos fazer com o próximo aquilo que não desejamos que façam conosco. Em política fiscal, essa ideia se traduz em um limite orçamentário pelo qual o governo só deve emitir títulos para financiar investimento ou rolar a própria dívida.

A lógica dessa regra é que, como a dívida será paga pelas gerações futuras, o mais justo é que seja criada somente para fazer algo que também beneficie as gerações futuras. Assim, estaria certo emitir títulos para fazer estradas, hospitais e outros investimentos.

Mas dívida não deveria ser emitida para financiar gastos correntes, como auxílio-moradia para servidores com imóvel próprio na cidade onde trabalham.

Porém, nem tudo que reluz é ouro. Como todo princípio geral, a regra de ouro soa bem na teoria e enfrenta problemas na prática, pois existem gastos correntes que claramente beneficiam as gerações futuras.

Suponha que o governo emita dívida para fazer uma ampla campanha de vacinação contra uma doença como a febre amarela. Isso é gasto corrente, mas beneficia as gerações futuras.

Pela lei brasileira, a vacinação deveria ser suspensa ou fracionada caso o cumprimento da regra de ouro esteja sob risco. Coitada da geração futura.

Outro exemplo. Se o governo emitir dívida para financiar gastos em ciência e tecnologia, o que por sua vez resulta em inovações e aumento de produtividade, isso trará ganhos para a população, agora e no futuro. Mas isso também pode ser vedado pela regra de ouro vigente no Brasil. Coitada novamente da geração futura.

E temos, ainda, o custeio da educação, que por definição beneficia os mais jovens, mas que, por ser despesa corrente, também não entra no atual critério que permite emissão de dívida. Assim, pela versão brasileira da regra de ouro, podemos chegar a cortar a educação da geração futura para preservar a geração futura. Tente explicar isso a estudantes.

Todos esses casos mostram que, na prática, aplicar a regra de ouro é mais complicado do que faz parecer a visão moralista que domina parte do debate econômico brasileiro.

Felizmente, quando ficamos só na economia, tudo fica mais claro. Regra de ouro é uma das diversas alternativas de regras fiscais possíveis, não a única. Assim como meta de resultado primário, teto de gastos e outras restrições fiscais, ela pode e deve ser avaliada por suas consequências práticas.

No Brasil de hoje, a regra de ouro pode inviabilizar ações que claramente beneficiam gerações futuras, além de produzir outra crise institucional em 2019. Por tudo isso, teremos de debater como aperfeiçoar ou até mudar esse princípio, e não seremos os primeiros.

Como apontou meu colega Manoel Pires, no blog do Ibre-FGV, tanto Reino Unido quanto Alemanha modificaram suas versões da regra de ouro após a crise internacional de 2008. Os ingleses fizeram isso já em 2009. Os alemães, em 2011.

Nos dois casos, a saída foi permitir mais flexibilidade fiscal no curto prazo, com ajuste gradual para metas de longo prazo. Tudo indica que o mesmo pode acontecer no Brasil, provavelmente em 2019.

Nelson Barbosa

Professor da FGV-SP, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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