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As armadilhas criadas pela nossa própria memória

O sinal fechou e parei o carro. Um pouco mais à frente, havia uma farmácia pintada de branco e o sol, naquele final de tarde, deixava a fachada com uma luminosidade amarelada típica daquelas pinturas do… como é que era o nome do artista? Mais cinco segundos de pausa mental e nada do nome. Fiquei inquieto. O pintor é um ícone do realismo americano e dos meus favoritos. Ele é o autor daquele quadro que retrata um bar no meio da madrugada. Tudo escuro e o interior iluminado, com um balconista, um casal e um outro freguês. Como era mesmo o nome do quadro? “Nighthawks”, grito para mim mesmo dentro do carro. E, aí, lembro do nome do pintor: Ed Hopper.

NIghthawks, de Edward Hopper

Aquele sol batendo na parede branca é igualzinho à luminosidade que se estampa em várias pinturas de Hopper, como “New York Office”, “Sunlight in a Cafeteria” e “Office in a Small City”. A obra dele aciona alguns gatilhos fortes em minhas recordações. Hopper foi um mestre em capturar a solidão do ser humano – algo que pode se manifestar fortemente quando estamos sozinhos ou até cercados de muita gente.

Sunlight in a Cafeteria, de Edward Hopper

A solidão que muitas pessoas sentem partem de dentro para fora e criam uma parede invisível em relação ao resto do mundo (nas obras de Hopper, muitas vezes essa parede invisível é literalmente representada por vidros de janela ou de vitrines).

Office in a Small Town, de Edward Hoppper

Quando era garoto, minha família não viajava muito, ao contrário do que acontecia com meus vizinhos e colegas. Isso me levou a desenvolver o gosto pela leitura e aprimorar meu poder de observação, pois ficava muitas horas sem falar ou interagir com alguém da minha idade. Com um grau de leitura maior que a dos outros, desenvolvi um vocabulário superior ao dos colegas da rua onde morava. Um dia, soltei a palavra “dilema” no meio de uma conversa. Um vizinho disse que eu lia dicionários para impressionar os outros. Comecei a rir. Eu tinha aprendido a palavra em questão em uma historinha da Turma da Mônica (que também gostava de ler, assim como todos os gibis da época).

Enquanto pensava neste episódio, uma torrente de recordações veio como um raio em minha cabeça sobre aquele momento. A música que estávamos ouvindo em um rádio portátil (“Music to Watch Girls By”, de Andy Williams); a roupa que meu vizinho vestia (camisa listrada de branco e vermelho e short azul); o exemplar da revista “Recreio” que estava no chão, no centro da rodinha de conversa; o chão de caquinhos vermelhos (com ilhas de azulejos quebrados em vermelho e preto) da garagem da casa do amiguinho onde estávamos nos reunindo e batendo papo.

Interrompi esse torvelinho de lembranças com um pensamento agudo: por que eu consigo me lembrar tão facilmente de acontecimentos que ocorreram há mais de quarenta anos e luto para me recordar do nome de um pintor mundialmente famoso?

Ultimamente, tenho percebido que minha memória – uma das minhas características mais marcantes, segundo os amigos – está dando sinais de fadiga. Tenho algumas dificuldades de reter informações básicas do dia a dia ou memorizar nomes de pessoas que conheci há pouco. E, paradoxalmente, me recordo de um ovo de Páscoa da Pan (aquela que fabricava os cigarrinhos de chocolate para crianças – hoje rebatizados de “rolinhos de chocolate”) que descobri escondido na cozinha de minha casa quando eu tinha quatro anos de idade.

Fico intrigado. Por que é mais fácil lembrar coisas do passado longínquo do que algo que acabou de ocorrer? Será que é o Alzheimer chegando? Me jogo a uma busca frenética na internet e descubro que existe um fenômeno chamado reconsolidação da memória. Funciona mais ou menos assim: toda vez que uma recordação antiga é acessada, o cérebro aciona um mecanismo semelhante ao do salvamento de um arquivo no computador. Assim, quanto mais acessarmos aquele arquivo em nossas mentes ao longo do ano, mais ele estará gravado na memória.

Ocorre que, em determinados casos, essas lembranças podem ser contaminadas por algo do presente. E elas são salvas de forma diferente na mente. É por isso que um acontecimento é recordado de forma desigual por pessoas que testemunharam o mesmo fato. Lembro que, aos 16 anos, tinha uma paixão platônica pela cantora Olivia Newton-John. E, na minha memória, lembrava de um programa de TV no qual ela cantava a canção “Magic”, do filme Xanadu. Me recordava perfeitamente de tudo. Um dia desses, porém, fui pesquisar no YouTube esta apresentação. Tomei um choque, pois era bem diferente do que estava gravado em minha memória. Me senti como se o editor de fotografias da época stalinista estivesse escondido em meu cérebro e mudando os acontecimentos do passado.

Para quem trabalha com informação, a memória é um instrumento imprescindível para escrever artigos, fazer paralelos entre o presente e o passado e criar repertório ao conduzir entrevistas. O surgimento de ferramentas de pesquisas, como o Google, deu uma certa folga ao meu cérebro e não fico mais desesperado quando tento me recordar de algo e a resposta não vem. Vou digitando pistas até descobrir o que preciso.

Essa terceirização da nossa memória para os servidores de mecanismos de busca pode enferrujar nossa mente? Será que a memória e o conhecimento acumulado no cérebro são tão importantes assim? Será que ficamos mais inteligentes quando acumulamos informação? Ou será que, ao não acumular informação, damos maior liberdade ao cérebro para pensar e ficamos mais inteligentes?

Espero viver o suficiente para saber responder a essas perguntas. E lembrar de fazê-las a mim mesmo daqui a alguns anos.

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